porque as aves levantam voo

Posted on 10/10/2011

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Um bando de aves brancas, não sei ao certo se eram Garças, repousavam sobre uma árvore quase sem folhas, em uma ilha muito pequena sobre o lago na curva da avenida. Eu as observava sobre a lentidão do tempo, como se as margens das águas dividissem a pressa e os ruídos excessivos das ruas, do murmúrio quase imperceptível do leito que corria sob as penas brancas que se confundiam com flores.
As aves voaram enquanto eu continuava meu trajeto.
Aves não se comunicam através de palavras. No momento em que se inicia uma revoada elas não gastam tempo perguntando umas pras outras “por que você voou?”. Me parece que elas não estão preocupadas com a utilidade dos fatos, mas estão ocupadas com seus sentidos e instintos. Se o voo de suas companheiras a fez perceber uma situação de perigo ela pode voar também, já se ela não percebeu indícios de risco, pode permanecer onde está, tranquila.
As funções do organismo das aves, assim como da maioria dos animais, funcionam em conjunto. A sensação ativa com igual intensidade o pensamento, o sentimento e a intuição. As aves estão em vantagem em relação a alguns animais da espécie humana. Estes humanos costumam gastar a maior parte de sua energia apenas com o pensamento, eles acabam esquecendo que as informações pensadas foram trazidas pela sensação (tato, olfato, gustação, audição e visão), e também não deixam que essas informações sejam coloridas pelo sentimento, muito menos que a intuição os leve para uma viagem sobre as possibilidades presentes na imaginação.
Imagine um grupo desses humanos em um campo. Em algum momento um deles percebe, através da sensação, alguns sons e uma imagem, seu pensamento diz que aquilo é um predador, seu sentimento de amor pela vida denuncia que aquilo é um risco e sua intuição o faz correr dali. Enquanto isso outro deles percebe que o companheiro correu e tenta descobrir o que aconteceu, centralizando toda a energia no pensamento, sua sensação não vai perceber a presença do predador, o sentimento e a intuição continuam tentando agir sem serem ouvidos. Ele pergunta compulsivamente “o que aconteceu?”, “por que você correu?”, até que o predador se aproxima…
“Porque as aves levantam voo” é um movimento para a ampliação da consciência. É algo que surge na minha criação e apreciação da Arte Contemporânea, que ultrapassa o entendimento da utilidade das coisas. Como consequência da automatização do trabalho industrial e da alienação das emoções pela mídia, as pessoas se prendem em valores e intenções superficiais e tristes. Os sintomas mais comuns da atualidade são compostos por uma exaltação da dor. Uma dor que é veiculada pela ausência de sentidos essenciais para a vida. As pessoas sofrem da doença de não saber quais são suas próprias vontades, de terem sua identidade carnal trocada por um perfil no banco de dados da web, de não se emocionarem com a própria evolução da vida. As pessoas se apoderam dessa dor que não tem motivos espontâneos, mas que é criada por elas mesmas.
“Porque as aves levantam voo” propõe uma atitude de silêncio e imobilidade diante do movimento vital já existente. É ter a religião de deixar fluir, ou perceber o fluxo, observando e participando dos fatos em sua totalidade. Assume a serenidade diante do ritmo da existência, em passos abertos à constante transformação do futuro, evoluindo com o passar do tempo.
Indicações para leitura:

ALMEIDA, Vera Lucia Paes de. Corpo Poético: o movimento expressivo em C. G. Jung e R. Laban. São Paulo: Paulus, 2009.

ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. 3ª edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
CAPRA, Fritjof. A Teia da Vida: uma nova compreensão científica dos sistemas vivos. Tradução: Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 1996.

GRINBERG, Luiz Paulo. Jung: o homem criativo. São Paulo: FTD, 2003.

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 1987.

LEMINSKI, Paulo. Inutensílio. In http://www.elsonfroes.com.br/kamiquase/ensaioPL2.htm

[theovalois]
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